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Arte para não morrer da verdade

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche escreveu certa vez: “temos a arte para não morrer da verdade”. A arte, todas as artes– a música, a literatura, as artes plásticas e visuais – é o espaço do possível e do impossível, do real e do imaginário, da provocação e do acolhimento, da acomodação e da desacomodação. Lugar onde temos permissão para ultrapassar as fronteiras do mundo real com segurança e a partir do qual podemos repensar nossa realidade de modo mais aberto e mais crítico, por vezes de um jeito mais lúdico e divertido, outras de maneira tensa e inquietante.

Há cerca de um mês o Ministério da Educação (MEC) decidiu recolher 93 mil exemplares do livro “Enquanto a noite não vem”, das Escolas Públicas de Ensino Fundamental. O livro, de autoria do escritor, ator e contador de histórias José Mauro Brant, reúne novas versões de oito contos populares, entre eles “A triste história de Eredegalda”, que fala do desejo de um rei em se casar com uma de suas três filhas. Diante da negativa, a menina é castigada e termina sendo presa numa torre. 

O argumento para a retirada dos 93 mil livros das escolas é de que o conto “A triste história de Eredegalda” faria apologia ao incesto.  Veja bem, o fato de uma obra tematizar incesto, não quer dizer que faça apologia ao incesto. Pelo contrário, os contos de fadas cumprem com uma função primordial que é permitir ao leitor vivenciar situações de medo, angústia, raiva, perda, por empréstimo, a partir das histórias de seus personagens. É porque a pessoa vivencia esses sentimentos negativos nos livros, assim como em filmes, séries e telenovelas, que não precisa trazê-los para a vida real. 

Não é negando ou escondendo a existência de violência no mundo que ajudaremos nossas crianças a transformá-lo num lugar melhor para se viver. Afinal, quantas vezes as crianças ficam junto na sala, enquanto os pais assistem aos telejornais e novelas?! Ou seja, nossas crianças são postas o tempo todo em contato com a realidade, de modo orgânico e direto, numa narrativa que é do mundo adulto. 

Quanto às crianças, não as subestimem, porque assim como Eredegalda, elas são capazes de discernir o que é certo do que é errado, principalmente quando se lhes permitem discutir sobre essas questões. 

A arte promove o pensamento crítico, amplia a capacidade de olhar, ao mesmo tempo que permite a cada pessoa perceber melhor o mundo e perceber-se no mundo. Isso, no entanto, acontece de um modo subjetivo e indireto, cada pessoa compreende a arte de modo diferente em diferentes momentos da vida, porque dia a dia amadurecemos e nos modificamos. Qualquer forma de barrar o acesso à arte é limitadora e empobrecedora! 

Valéria Neves Kroeff Mayer (Léla)
Professora Universitária, Escritora e Contadora de Histórias