No dia dezoito último minha família celebrou dez anos de óbito do nosso pai. Ele partiu para o eterno logo após completar oitenta anos e com fantástica lucidez. Um câncer silencioso e indolor – meu pai sempre foi muito sortudo – no pulmão esquerdo o levou ainda cedo. Para mim muito cedo. Sou daqueles que vê a idade humana na perspectiva bíblico-judaica: “Meus eleitos terão a idade das árvores” – Isaías 65, 22 -, sinalizando que nascemos para biologicamente vivermos até a total “liquidação” natural do nosso corpo, com a serena transcendência de nosso âmago, nos tornando na velhice dóceis, leves, iluminados e iluminadores. Amo os idosos sorridentes, que passam leveza e boa vibração.
Este simples artigo tem como chave aspectos da teratanatologia – terapia no sentido cientifico para uma boa morte – entre outras definições. Sabe-se que na cultura moderna e “líquida” cresce sempre mais o pavor frente à morte. No geral se busca escondê-la e evita-se falar sobre o tema. Associa-se a morte apenas a aspectos negativos como perdas, rompimentos, tragédias, dores, sofrimento hospitalar, fim, etc.
Para a cultura judaica possuir a “idade das árvores” – jacarandá, oliveira, palmeira – árvores que vivem séculos, significa que a existência humana foi divinamente criada para ser longa, muito longa. Na Bíblia a longevidade é considerada bênção, não significando que o contrário seja maldição.
Mas meu pai foi a óbito há dez anos e isso eu pessoalmente achei por bem refletir. Ele poderia estar celebrando nesses dias noventa anos. Mas ele tinha uma decisão inteligente: quando percebeu que seu corpo não mantinha mais as forças e sua energia ia aos poucos diminuindo, não apelou para nada de curandeirismo ou mágico, apenas encarando com realismo a situação irreversível, e seguindo as orientações dos oncológos. Dois anos antes eu disse a ele: ‘Pai, quando o senhor quiser se preparar para morrer bem, por favor, lembre que eu posso ajudá-lo”. Afinal, eu consumia naquele período milhares de páginas sobre a teratanatologia a partir de Elisabeth Kübler-Ross, Herman Feifel, Robert Kastenbaum, Debbie Ford, etc. A resposta de meu velho foi direta: “Que eu saiba não estou morrendo”. Sim, eu sei, respondi. Ele emendou em seguida: “Ok filho! Quando eu perceber que chegará a minha ‘hora’ eu vou falar com você”. Assim se deu, um ano mais tarde ele me diz: “Filho, agora gostaria que a gente falasse sobre o assunto que você me perguntou há um tempo, lembra”? Meu pai estava se dispondo a se preparar para sair desta vida e entrar no eterno de forma consciente e serenizada, e assim se deu. Ele aceitou cada uma das “lições” que psicoterapeuticamente lhe indiquei e compreendeu bem que morrer é como nos preparar para uma linda viagem apenas de ida, sem volta, um “exílio voluntário” e definitivo para uma pátria, que segundo o tamanho do nosso coração e nosso grau de amor, será uma pátria bonita, acolhedora na amorização, de luz e de paz.
Vários de meus manos e manas são profissionais da saúde em São Paulo nas seguintes áreas: psicologia, nefrologia, enfermagem, pediatria, geriatria, etc. Meu pai teve a sorte de ficar poucas semanas num bom hospital na Vila Mariana na capital paulista. Às dez horas do dia dezoito de junho pediu ao meu mano caçula, também da área de saúde, uma xícara de café. Apenas “negociou” que não fosse o café da lanchonete do hospital que segundo ele era muito “fraco”, mas da lanchonete do português próximo ao hospital, e, se possível, numa xícara de louça. O último desejo do pai foi rápido e prontamente realizado. Com a xícara de um café bem “encorpado” e quente nas mãos, saboreou como saboreamos gostosas bergamotas debaixo dá generosa árvore cítrica neste inverno.
Ao tomar metade do café, sua respiração foi encurtando e meu mano rapidamente pegou a máscara de oxigênio. Meu pai entregou a xícara para meu mano e em seguida segurando seu braço disse a seguinte frase: “Não precisa mais filho. Assim está bom”. Naquele momento ele deu seu último suspiro, com paz, com serenidade de alma e sabendo que estava iniciando sua viagem que há um ano vinha sendo por ele mesmo bem preparada. Obrigado paim pelo que nos ensinou em “partir” com paz e entregar-se serenamente nas mãos do Divino. Saudades sempre!
Cyzo Assis Lima,fpm
Padre e psicoterapeuta clínico