O novo sistema, sem Estado e sem política, implantado em 11 de setembro de 2021, teve grande apoio na classe média e no empresariado. O fim dos impostos foi motivo de imenso regozijo. Igualmente o fim do salário mínimo e das leis trabalhistas foi elogiado como um avanço em favor da livre iniciativa. O otimismo desses empresários só diminuiu quando notaram que na falta de leis, autoridades e polícia muitos operários começaram a tomar por conta própria o que consideravam uma justa retribuição pelo seu trabalho. Os saques de empresas e as agressões a patrões também não foram divulgadas nos meios de comunicação para evitar um “clima negativo”.
O fim das prisões e a soltura dos presos provocou comoção generalizada. A presença dos larápios na rua, sem ninguém a enfrentá-los, foi sentida na pele por dez entre dez cidadãos. A ausência da justiça foi notada logo depois, em vista dos conflitos entre cidadãos, das disputas entre grupos e entre empresas. Não havendo um árbitro para decidir os conflitos, os mesmos eram resolvidos na base da lei do mais forte. O clima de faroeste começou a se espalhar.
Os preços das mercadorias começaram a oscilar em função das novas regras de mercado. As grandes corporações usaram sua força para fazer negócios altamente rentáveis e impuseram preços abusivos sempre que puderam. Pequenas e médias empresas começaram a falir em massa. Um pouco adiante, as próprias corporações multinacionais começaram a enfrentar dificuldades: não havia quem cuidasse de estradas, portos e aeroportos, quem garantisse o cumprimento dos contratos, o pagamento das compras, o respeito às patentes, a estabilidade da moeda e outras condições para o funcionamento do mercado. A economia começou a desandar.
Entre o povo humilde o custo foi maior. Não havia mais SUS para atender os doentes. Não havia mais escolas públicas para os filhos. Seguro-desemprego, bolsa-família, aposentadoria, nada disso existia mais. Onde buscar socorro?
Vinte anos depois, a situação da humanidade era de retrocesso generalizado. A economia estava desestruturada em todos os países, boa parte das empresas destroçada, muita gente da cidade fugindo para regiões do interior em busca de sobrevivência. As riquezas naturais foram rapidamente consumidas e o meio ambiente foi devastado. A arte e a cultura murchavam em meio às conflagrações cotidianas.
A máfia e o narcotráfico haviam se tornado em poucos anos as grandes forças internacionais. O lugar dos políticos foi ocupado pelos criminosos.
Cinquenta anos após muita gente se deu conta de que a negação da política havia conduzido a humanidade ao caos. Em alguns lugares iniciou um movimento comunitário pelo direito de organizar grupos e associações. Nas redes sociais timidamente foram retomadas as discussões sobre a necessidade de haver espaços de debate coletivo. Ninguém se atrevia a falar a palavra “política”, nem outras palavras suspeitas como “cidadania”, “direitos” ou “democracia”.
Todavia, nem essa tímida discussão sobre o direito de organizar grupos e associações prosperou. A suspeita de que depois da organização comunitária viria uma campanha pela volta da política e do Estado levou a máfia e o narcotráfico a tomar medidas para cortar o mal pela raiz: as poucas vozes que se pronunciavam sobre o assunto foram logo silenciadas.
A idade das trevas prolongou-se. A lei do mais forte imperou por décadas. Sem política, a barbárie venceu. O sonho mostrou-se uma ilusão e o remédio, um veneno. O fim da política não teve final feliz.
É apenas uma fábula. Por enquanto.
*Professor