Início Opinião As relações autofágicas e suas mazelas (Parte II)

As relações autofágicas e suas mazelas (Parte II)

Gestores comprometidos apenas com o papel da flexibilização do mercado constroem relações que muitas vezes ameaçam os trabalhadores com recursos autoritários ou demissões, atingindo a dignidade do ser humano. Ancorados numa estrutura jurídica ressignificada pelo mercado ao longo dos anos 90 coloca a figura de um sujeito abstrato do direito separado de seus vínculos e de suas emoções. Trabalha sob a ótica do sujeito sem carne, ossos, alegria e sofrimentos. Lembramos de Braudel quando ele nos diz que “o capitalismo só tem êxito quando começa a ser identificado com o Estado, quando é ele o próprio Estado”.
Veja a confirmação disso com a atual turbulência global com epicentro na Europa, em que as bases do neoliberalismo culminaram na crise financeira. Como vimos no texto anterior, muitos são os pressupostos dessa máquina capitalística que vão agir no sentido da produção de mecanismos fragmentadores do self e, por isso, no sentido de impedimento da construção de um sujeito autônomo. Entre eles está um que corrobora para a autofagia, é a fragmentação de tudo. Há uma esquizofrenização em curso permeando nossa cultura que atinge a subjetividade do sujeito. No instante em que se separa mundo externo e interno, o eu e o outro, ser e fazer, nós incorremos no risco de perdermos a noção da realidade em nossa volta como de nós mesmos. A esquizofrenização, como produto da fragmentação, faz com que desensibilizamos para o fato de aceitarmos em trabalhar cada vez mais e receber cada vez menos, de repetir o discurso “autorizado” sem se dar conta, de ver as realidades brutais de nossa população, e aceitamos um ambiente de trabalho em que se privilegiam e exercitam as relações do ganha-perde.
Nesses tempos de biopoder (a vida agora se torna objeto de poder), a máquina lança suas garras na homogeneização das consciências, isto é, na abolição da diferença. Perdemos nossa autoria, a autopoiese. Passamos a acreditar e reconstruir esse mundo nas relações de trabalho. Por força do contexto, vamos fazendo o jogo dessa reprodução de modelo que não nos permite criar saídas para os processos de singularização. Assim, com a cabeça colonizada, procuramos imitá-lo e identificar-se com ele. Entretanto, também perdemos a nossa sensibilidade.
A mídia, por sua vez, passa a dizer (insinua) como devemos pensar e agir. Porque a cultura do igual trabalha com a repetição, reforça a vergonha de agir diferente. Se ela puder envergonhar alguém que é diferente ou tomou uma atitude de lutar por seus direitos, ela o fará. Então, teremos um sujeito envergonhado perante a sociedade de não ser igual aos que estão trabalhando no ganha-perde. Nesse caso, nossa cultura vende a vergonha que é um sentimento de inferioridade. Por conseguinte, esse sentimento passa a incomodar os sujeitos que estão mobilizados na luta. De modo que, nenhum trabalhador mais se expõe na luta coletiva, porque ninguém quer ser inferior aos outros que aderiram às relações do ganha-perde.
Com isso o poder invisível vai administrando, esvaziando nossa vida e restringindo a liberdade. Kurz ao estudar as formas de poder, nos diz: “Fazemos hoje, voluntariamente, coisas que os homens se recusavam a fazer, pelo menos, de que reclamavam, tendo de ser chicoteados para realizá-los. Fazemos as mesmas coisas independentemente da época do ano, da hora do dia, numa coação internalizada dentro do tempo contínuo, vazio e linear, já inscrito em nós, numa submissão voluntária”.
Enquanto a sociedade não refletir sobre a sua condição de sujeitos assujeitados e, se manter a crença na representação de que existe uma verdade fora de nós, que é a mesma para todos e que pode ser veiculada por meio dos discursos autorizados do poder, então as atuais estruturas de dominação social, do conformismo, da cegueira e da obediência coletiva vão permanecer.
Precisamos, então, resgatar a esperança violentamente atingida neste processo autofágico. Entender como funciona o poder e que tudo é questionável. A conjuntura que está aí foi construída e não é um fenômeno natural. Não compartilhamos com a ideia de que a solução e o bem-estar estão no indivíduo, como querem fazer crer os livros de autoajuda, mas na relação solidária e eticamente comprometida com o outro. Uma sociedade que trabalha com a competição ou exclusão do outro, é patológica, diz Maturana. E como doença deve ser tratada. Podemos começar a eliminar o vírus dentro de nós, porque, infelizmente, nenhuma mudança pode ser baixada por decreto. A mudança é sempre potencializada de dentro para fora e, qualquer que seja a motivação para a mudança, ela é sempre endógena ao sujeito. Quer dizer, muda-se porque interiormente se quer mudar, porque algo nos diz que vale a pena mudar ou não.

*Professor na Universidade Tuiuti do Paraná/Uníntese, Santo Ângelo. Doutorando em Epistemologia na UNTREF, Buenos Aires.