Acho que há mais lados negativos do que positivos no saudosismo. Esbanjar elogios aos “bons tempos”, assumir aquele olhar sonhador e pontificar sobre as delícias do passado e a suposta superioridade das coisas, pessoas e experiências de então sobre o aqui e agora nunca me pareceu realista. E sem uma sólida noção de realidade, não há análise crítica que resista mesmo à mais básica discussão.
Um olhar cuidadoso pode nos revelar que muita gente à nossa volta assume uma postura saudosista apenas para disfarçar sua acomodação e falta de conhecimento sobre o mundo de hoje. É mais fácil, por trás do escudo das “maravilhas do ontem”, desprezar e zombar das “porcarias do hoje”.
Me parece que algumas atividades a que nos dedicamos são mais propícias aos saudosistas de plantão. As ciências, por motivos óbvios, não são terreno fértil aos apologistas do passado; seria difícil desdenhar dos avanços da medicina e dos benefícios do mundo virtual. Como preferir o papel carbono à impressora a laser? Como argumentar em favor da fita cassete ante a bem-vinda realidade do DVD e dos flashdrives? Melhor procurar algo mais fácil. As artes, então, por seu caráter subjetivo, são alvo fácil para a patrulha da saudade.
A primeiríssima opção, é claro, é a música. É preciso um conhecimento razoável para se comparar o ballet de Ballanchine e, digamos, Alvin Ailey; ou uma suposta superioridade da arquitetura de outros tempos sobre a atual. É necessário um verdadeiro malabarismo de argumentação para apontar em que a pintura dos impressionistas é superior à de um Pollock ou um Basquiat. Não – é mais fácil cantar as glórias daquela “música maravilhosa que já não se faz”.
A sedução do saudosismo em relação à nossa música é tanta, que eu mesmo não sei como escapei de estar no time da saudade. É delicioso discorrer sobre o perfeccionismo obssessivo de João Gilberto, a fantástica tecelagem linguística de Chico Buarque em suas letras, a arquitetura harmônica delicada e complexa da bossa-nova, o vigor das composições de Geraldo Vandré e o lirismo encantador de quase tudo que Cartola criou. E ainda teríamos uma centena de outros gênios no banco de reserva, prontinhos para entrar em campo caso alguém ousasse contra-argumentar.
Mais fácil ainda fica colocar na mesa de discussão a produção massiva de canções de fácil (in)digestão que a mídia põe no ar a cada minuto. Seria algo como comparar os Pelés de ontem com os Coalhadas de hoje. Mais fácil, mas também muito injusto. Assim como no futebol, onde para cada Pelé havia centenas de pernas de pau, pode-se hoje (graças a Zeus!) assistir à genialidade fácil de Neymar, que, por ser tão bom, lhe perdoamos até o corte de cabelo. O mesmo se vê na música; é só escutar com cuidado. Há muita música boa brotando por aí – garimpe!
Nosso passado musical tem lá seus vexames. Na mesma época em que Gonzaguinha compunha suas pérolas, podia-se ouvir vinte vezes cada dia a dupla Dom e Ravel cantando (sic) “… eu te amo, meu Brasil, eu te amo!”. Enquanto Gil nos presenteava com “Domingo no Parque”, Ronnie Von nos “deliciava” com musiquinhas tão medíocres que até tenho medo de lembrar de alguma. Junto com Elis Regina, não escapávamos de ouvir Vanusa ou, num dia de muito azar, Odair José, Martinha e Agnaldo Timóteo. Com uma memória apurada e imparcial, fica bem mais difícil sentir saudade.
Só o samba nunca decepcionou. Esta maravilha a que poucos dão o merecido valor, sempre, década após década, conseguiu a mágica de manter uma excelência criativa impressionante. É por isso que meus heróis brasileiros são os sambistas. Já nos desesperamos com nossos políticos, já nos decepcionamos com nossos craques, já nos desiludimos com nossos ídolos; nunca com nosso samba. Meus heróis improváveis tomam café preto e ralo de manhã, cometem erros de concordância, moram mal e longe, têm os bolsos vazios no fim do mês. E ainda assim nos dão sua música. E a música que nos deram e dão é, mais do que percebemos, uma parte importante de nossa identidade. E isto não é pouco.
*Linguista e professor